sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Corpo, pensamento, pé.

Agora, faria qualquer coisa. De mim, faria qualquer coisa. Qualquer coisa me vem à cabeça, qualquer cabeça e da cabeça para baixo. Pescoço, ombros, peito, seios, barriga, quadril, coxas, panturrilhas, tornozelos, pés. Vou, da cabeça aos pés. De cabeça para baixo. De qualquer forma. Faria de mim, de qualquer forma. De qualquer forma, faria qualquer coisa. De mim. Sinto devagar, como meus pensamentos, com uma colher, em uma cadeira. Sinto devagar, como meus pensamos, sobre uma colher, em uma cadeira. Sento devagar, como meus pensamentos, com uma colher, em uma cadeira. Sento devagar, como meus pensamentos, sobre uma colher, em uma cadeira. Caio da cadeira. De cabeça para baixo. Caem do prato. Meus pensamentos. Da cabeça aos pés. Caem do prato, os pés. Como uma colher, resgato da água da sopa meus próprios pés. Agradeço por não ser como um garfo. Como uma faca. Corta minha garganta. Sangra, mas não vejo. Nadam meus olhos. Não vêem nada. Não olham de baixo d’água. Corta meu esôfago, já tão debilitado por causa do cigarro. Corta fácil. Como gaze. Para fazer assepsia. Bebo álcool e não sinto mais. Qualquer coisa, já nem sinto mais. Fiz de mim. Qualquer coisa. Mas nem senti. Da cabeça aos pés. Da cabeça para baixo. Para cima. Pés, tornozelos, panturrilhas, coxas, quadril, barriga, seios, peito, ombros, pescoço. Fui dos pés à cabeça. De cabeça para cima. De qualquer forma. Fiz de mim, de qualquer forma. De qualquer forma, fiz qualquer coisa. De mim.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Sem pratos na mesa de jantar.

Naquela noite, talheres bem dispostos na mesa. Cadeiras arrumadas, uma vela acessa no meio do banquete. Desde peru assado até batatinhas cozidas. Aguardavam ansiosos o jantar. Não era uma família. Também não eram convidados. Nem ao menos o cachorro do vizinho ou a gata da dona da casa. A comida dava para mais de seis pessoas, dava para todas as crianças que morrem de fome na África. Embora isto fique um pouco clichê, mas dava. Quem preparara o jantar? Ele apenas estava lá. Não havia pratos. Não havia pratos descartáveis nem de cerâmica ou porcelana. Não havia pratos de barro. Não havia terra onde fora feita a colheita dos vegetais para o jantar. O peru fora assado em uma fonte de vidro, no forno sofisticado que havia na casa. Era uma casa, sim. Uma casa simples o bastante, porém cheia de apetrechos. Eu mesma, não era ninguém lá. Eu nem mesmo estava lá. Nem mesmo a dona da casa. Nem mesmo sei como eu sei tudo isto. Também não sei o porquê desta observação. Pouca e muita coisa eu sabia e continuo a saber. Acredito que minha mente se aventura em lugares que nunca conheci e histórias das quais nunca participei. Quantas cadeiras havia em volta da mesa? Eram quatro. Havia mais duas em um canto da casa, e o chão dava para sentar mais algumas pessoas. A campainha tocou. O prato principal estava queimando. A campainha tocou mais uma vez. O prato principal estava estragado. Que bom que não havia convidados para o jantar. Que bom que não havia família para se desapontar com o jantar. Pergunto-me se o fato de não haver pratos de nenhuma espécie fora proposital. Ouvi uns barulhos vindo de um dos quartos da casa. Ao todo, eram três quartos. A porta do quarto se abriu. Enganei-me ao pensar que a casa se encontrava vazia. Alguém abrira a porta de fato, mas demorou um tempo até alguém sair do quarto. Acho que ouviram os meus passos. Mas que ironia. Uma criança entre quatro e cinco anos aproximou o olhar no pequeno espaço que se formara ao abrir a porta do quarto. Ela não abrira a porta totalmente. A porta estava semi-aberta. A criança olhou desconfiada, mas não viu ninguém. Logo mais, ela já estava andando pela casa. Olhou o prato principal, estragado. Quis chorar, mas vestiu umas luvas de cozinha. O prato foi para a lixeira. Mas que ironia. Tirou as luvas, deixou-as em cima da mesa da cozinha, olhou a mesa de jantar, voltou para o quarto, fechou a porta, deitou na cama e voltou a dormir. A campainha tocou. O carro estava em casa. Não havia pratos de nenhuma espécie. Nunca ouve, sabemos desde o começo. As moscas já haviam invadido a lixeira, atrás do prato principal. Enganei-me ao pensar que a casa se encontrava vazia. O quarto permaneceu fechado. Não família, não convidados. O jantar dava para mais de seis pessoas. Os talheres bem dispostos na mesa. A vela continuava acessa. O peru, as batatinhas e o resto do jantar, não saira do lugar. A este ponto tudo já estava frio e o prato principal já havia passado do ponto. Mas que ironia, pensei. Estava na hora de ir embora, embora o jantar não tivesse hora para começar nem terminar. As luzes da casa ficaram acessas um bom tempo. A campainha não tocou mais, devia estar com defeito. Não quis saber, já estava ficando chato. Ia pegar o meu casaco antes de deixar a casa, mas lembrei-me de que eu não estava lá.

domingo, 30 de novembro de 2008

Par de meias sujas em cima da mesa.

Havia uma camisa também, branca, uma calça velha e um caderno de anotações. Peguei este último para ver se tinha algo escrito. Algo importante. Quem poderia ter esquecido um caderno de anotações em cima da mesa? A mesa não era minha, não era de ninguém. Eu sabia, pois não havia nenhum nome escrito nela. A camisa, a calça velha e o par de meias sujas, também não tinham nome escrito. Mas provavelmente seriam de alguém. Provavelmente do dono, ou dona, do caderno de anotações. Era um caderno pequeno, mas não tão pequeno. Dava para escrever quinze linhas numa boa. Dezesseis se a linha do final fosse utilizada também. Então vem aquela pergunta – Para que utilizar a linha do final se no verso da folha há mais quinze linhas para serem utilizadas? Não sei. Não era algo que me interessasse muito saber. A primeira coisa que vi ao abrir o caderno de anotações foi uma poesia. Era então um caderno de poesias? Li a poesia até o final, esperava encontrar o nome do autor, mas não. Gostei muito da frase que começava na linha número oito e acabava na linha número onze, “E quando ela veio até mim, ouvi passarinhos a cantar no meu jardim. Não que eu tivesse um jardim”. A poesia tinha quatorze linhas, uma linha a menos do limite. Ou duas, se considerarmos a linha do final. No verso desta folha, primeira folha, não havia nada escrito. Havia apenas o relevo das palavras do outro lado. A caneta que as escrevera fora bem pressionada contra a folha. Olhei para o lado, a segunda folha, havia apenas duas palavras, escritas a lápis, e já meio apagadas, não consegui ler nem uma nem a outra. Apenas sabia que havia duas palavras, a primeira terminava com a letra “a”, a segunda começava com “t” ou “f”. Fui virando as folhas uma por uma, eram sessenta no final das contas, e nesta última havia um lembrete: “Colocar o par de meias sujas na máquina de lavar, pendurar a camisa num cabide e guardar no armário, jogar fora a calça velha e pegar o caderno de anotações. Obs.: Não esquecer de pegar o caderno de anotações”. As meias eram vermelhas, anotei no lembrete. Fechei o caderno e deixei-o em cima da mesa, no mesmo lugar.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Minha boca bebia vinho.

Minhas mãos seguravam uma garrafa de vinho tinto. Uma garrafa escura, de vinho tinto. Outras duas mãos seguravam o meu cigarro e outro cigarro, acessos. A fumaça se espalhava pelo quarto fechado. O cigarro parava em minha boca. A garrafa parava em minha boca. Minha boca parava em outros cantos. A fumaça abafava o quarto, abafava os sons. A fumaça abafava o quarto e eu embaçava as janelas do mesmo, eu embaçava a garrafa escura de vinho tinto. Molhavam-se os lençóis de suor. As roupas não. Não havia roupas. E o que pensaria ela? Ela que nem estava lá. Mas quem estava lá? Minha mente era o quarto abafado. Era isso. Ninguém ligou para o fato desse dia ser um dia aparentemente especial. Ninguém queria saber. Ninguém se resumia a nós. O vinho estava a nos embriagar. Eu estava a me embriagar. O cigarro tentava acertar os meus lábios, meus pulmões. Meus exaustos pulmões. Acertar-nos é o único que conseguíamos. Sem garrafa, sem cigarros. Estes já estavam num canto, eu noutro. Minha boca já não mais bebia vinho. Minhas mãos já não mais seguravam a garrafa de vinho tinto. A garrafa escura, de vinho tinto. Por um breve momento, parei e olhei ao meu redor. O amor é um submarino à vapor, pensei.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Meu cachorro morreu e eu não vi.

Estava frio lá fora, peguei um casaco que estava pendurado numa cadeira. Costumo deixar as roupas em cima das cadeiras, prezo pela praticidade. Afinal, para quê guardar as roupas no armário? Tudo bem aquelas velhas que não são usadas nunca, ou então as que são compradas para ocasiões especiais, e apenas para tais ocasiões, o que inclui comemorações. Desde aniversários chatos até natal e ano novo. Páscoa quem sabe. Missa? Para quem vai. Abri a porta de casa e saí para o jardim. Podia imaginar a neve caindo sobre mim, e um trenó lá no céu, com direito a renas e papai noel com ajudantes de papai noel e sacos cheios de presentes. Não era natal. Não dava para enxergar o céu. Havia neblina. Não havia neve. Mas é claro que não havia neve! Também não havia cachorro. Foi então que pensei - Ué. Cadê meu cachorro de estimação?, pois é. Ele não estava lá. Ele não estava lá, nem aqui, nem escondido na neblina, muito menos embaixo da neve proveniente da minha imaginação. Pensar que ele poderia estar no trenó de papai noel seria um absurdo. É claro que não pensei nisso. A este ponto já estava com uma sensação ruim. Uma sensação ruim além do frio que sentia. Não sei o que era pior, o frio ou a sensação ruim. Para parecer mais humana, diria que os dois. Desconsiderando o fato de que humanos adoram fazer comparações e achar que uma coisa vale mais que a outra. Quero ser mais humana, mas não esse tipo de humano que eu não gosto. Continuava a imaginar neve, e o meu cachorro, cadê? Chamei pelo nome dele, mas não conseguia chamá-lo muito bem. O frio não me deixava. Acho que estava congelando, foi quando eu vi um cubo de gelo. Um cubo de gelo do tamanho de um cachorro de tamanho médio. O meu cachorro era de tamanho médio. Estava com frio. Não quis chegar perto do cubo de gelo do tamanho de um cachorro de tamanho médio. Meu bom senso me disse que ficaria com mais frio. Voltei para dentro de casa, tirei o casaco, coloquei-o de volta na cadeira. Meu cachorro morreu, e eu não vi.

Ninguém me esperou para comemorar a virada do ano.

Quando vi, as roupas brancas já estavam pelo chão. Os fogos de artifício já haviam cessado, deixando apenas a fumaça no lugar. O relógio já não marcava mais meia-noite em ponto, esta já havia se passado faz tempo. Garrafas de champagne estavam todas vazias, os copos na mesa, e pratos, também. Embalagens de salgadinhos, panelas e outros, todos vazios. Na rua, não se via mais pessoas, nem mesmo as decorações natalinas. O novo ano já havia começado, e sem me esperar. - Sacanagem!, pensei. O que eu faço com a minha roupa branca? Como não ouvi o ruído dos fogos artificiais? Por que o relógio não parou? Ninguém me chamou para beber e comer? Cadê as pessoas que comemoram até o dia seguinte? Onde as decorações natalinas foram parar? Sem respostas. Aguardava agora pelo próximo natal, e quem sabe, de presente, um ano novo.
"Querido papai noel, não sei se deveria escrever o seu nome com letra maiúscula, espero que neste natal as decorações natalinas fiquem por mais tempo, até o segundo mês do ano novo que eu gostaria de ganhar. Obrigada."